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na causa que explica tudo o resto. Por exemplo, a crise financeira
            permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas so-
            ciais (saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos
            salários. E assim impede que se pergunte pelas verdadeiras causas
            da crise. O objetivo da crise permanente é não ser resolvida. Mas
            qual é o objetivo deste objetivo? Basicamente, são dois os objeti-
            vos: legitimar a escandalosa concentração de riqueza e impedir
            que se tomem medidas eficazes para impedir a iminente catástro-
            fe ecológica. Assim temos vivido nos últimos quarenta anos. Por
            isso, a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que
            a população mundial tem vindo a ser sujeita. Daí a sua específica
            periculosidade. Em muitos países, os serviços públicos de saúde
            estavam há dez ou vinte anos mais bem preparados para enfrentar
            a pandemia do que estão hoje.
               A elasticidade do social. Em cada época histórica, os modos
            dominantes de viver (trabalho, consumo, lazer, convivência) e de
            antecipar ou adiar a morte são relativamente rígidos e parecem
            decorrer de regras escritas na pedra da natureza humana. É ver-
            dade que eles se vão alterando paulatinamente, mas as mudanças
            passam quase sempre despercebidas. A irrupção de uma pan-
            demia não se compagina com tal tipo de mudanças. Exige mu-
            danças drásticas. E, de repente, elas tornam-se possíveis como se
            sempre o tivessem sido. Torna-se possível ficar em casa e voltar
            a ter tempo para ler um livro e passar mais tempo com os filhos,
            consumir menos, dispensar o vício de passar o tempo nos cen-
            tros comerciais, olhando para o que está à venda e esquecendo
            tudo o que se quer mas só se pode obter por outros meios que
            não a compra. A ideia conservadora de que não há alternativa ao
            modo de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai
            por terra. Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema
            político democrático foi levado a deixar de discutir as alternati-
            vas. Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão
            entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela



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