Page 254 - Quarentena_1ed_2020
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livre também não estaria mais ligado às engrenagens do mercado
            na forma de consumo, ele seria realmente livre, inclusive da lógica
            da mercadoria.
               A quarentena no mostra, enfim, que temos recursos técnicos e
            principalmente imaginativos (utópicos?) para sonharmos uma so-
            ciedade com outros tipos de necessidades e prioridades, que pode-
            riam ser atendidas com muito menos “trabalho” humano. E mais,
            que os serviços e bens materiais podem ser distribuídos de forma
            igualitária entre as pessoas, reconhecendo que as necessidades sim-
            bólicas (que vai do gosto culinário, passando pela orientação sexual
            até as aptidões para certas atividades) são bastante diferentes entre
            indivíduos e grupos sociais.
               As leis do capital são tão naturalizadas que aprisionam, inclusi-
            ve, a nossa racionalidade e imaginação, que só conseguem pensar
            e imaginar possibilidades de vida a partir de um mundo pré-for-
            mado e pré-concebido por estas leis: necessidade de trabalho, de
            concorrência, de eficiência, de moeda, de lucro etc.
               Uma crise terrível como a que vivemos tem pelo menos a van-
            tagem de quase suspender (e apenas temporariamente) o funcio-
            namento da economia e, consequentemente, das leis do capital.
            Essa suspensão forçada nos permite ver que é possível haver vida
            humana que não seja regida pelo capital, ou seja, que não seja ins-
            trumentalizada para sua reprodução. Se formos um pouco mais
            ousados, podemos aproveitar esta parada dos mercados para ima-
            ginar e pensar um outro mundo, não onde o capital seja huma-
            nizado, o que é impossível como acabamos de mostrar, mas onde
            não mais existam as leis “naturais” do capital nos impondo suas
            coerções e sofrimentos desnecessários.
               Ao suspender o funcionamento da máquina do mundo, a crise
            suspendeu também a hipnose do capital sobre nossas mentes e
            abriu uma brecha em nossa percepção para vermos a irracionalida-
            de e o sofrimento provocado nas pessoas, não apenas pelo neolibe-
            ralismo, mas pelo próprio capitalismo e sua lógica da mercadoria.



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