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A principal hipótese dos cientistas é de que, tal como seus an-
               tecessores SARS-CoV e MERS-CoV, o novo coronavírus chega aos
               corpos humanos em razão da fome que levou pessoas a comerem
               camelos, gatos e morcegos, pois a vida nesse centro econômico al-
               tamente desenvolvido é também radicalmente desigual.
                  A COVID-19 tem outro traço irônico ou perverso. Não atinge a
               todos do mesmo modo. Pode até ser sedutor o discurso de que esta-
               mos no mesmo barco, mas não é real.
                  Habitamos o mesmo planeta, mas temos condições absoluta-
               mente desiguais de vida e, portanto, de reação a pandemias. Quem
               não tem casa, não pode fazer isolamento físico. Quem não tem tra-
               balho, não consegue se alimentar adequadamente, não tem sanea-
               mento básico e, portanto, não terá as condições para enfrentar o
               vírus e a doença.
                  A doença não atingirá nossos corpos da mesma maneira. E
               mesmo que tenha sido disseminada entre pessoas privilegiadas que
               viajam em aviões, muitas das quais fatalmente atingidas por seus
               efeitos, o fato é que a doença fará muito mais vítimas entre os vul-
               neráveis, que são a maioria, especialmente em países recordistas
               em desigualdade como o Brasil.
                  Diante de tantas constatações, cada vez mais visíveis e irrecu-
               sáveis, a COVID-19 deveria nos impedir de seguir fingindo que a
               desigualdade social é uma fatalidade, em relação a qual não temos
               responsabilidade  alguma.  Ou  que  a  miséria  é  algo  natural,  que
               simplesmente existe no mundo. Ou, ainda, que a riqueza decorre
               do “mérito” individual que torna aceitável o fato de que algumas
               poucas pessoas contem com respiradores próprios ou helicópteros
               que garantam rápido atendimento em caso de contaminação, en-
               quanto a imensa maioria está em situação de absoluto desamparo.
                  No entanto, ainda continuamos convivendo tranquilamente
               com o fato de que no Brasil há mais de 13 milhões de pessoas mo-
               rando em favelas ou nas ruas; mais de 18 milhões de crianças com





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