Page 230 - Quarentena_1ed_2020
P. 230

um drama por causa disso, não é mesmo? E o que afinal significa
            5.000, 10.000 mortes se estamos falando em “garantir empregos”,
            ou seja, em garantir que todos continuarão sendo massacrados e
            espoliados em ações sem sentido e sem fim enquanto trabalham
            nas condições as mais miseráveis e precárias possíveis?
               A história do Brasil é o uso contínuo desta lógica. A novidade é
            que agora ela é aplicada a toda a população. Até bem pouco tempo,
            o país dividia seus sujeitos entre “pessoas” e “coisas”, ou seja, entre
            aqueles que seriam tratados como pessoas, cuja morte provocaria
            luto, narrativa, comoção e aqueles que seriam tratados como coisas,
            cuja morte é apenas um número, uma fatalidade da qual não há
            razão alguma para chorar. Agora, chegamos à consagração final
            desta lógica. A população é apenas o suprimento descartável para
            que o processo de acumulação e concentração não pare sob hipó-
            tese alguma.
               É claro que séculos de necropolítica deram ao Estado brasileiro
            certas habilidades. Ele sabe que um dos segredos do jogo é fazer de-
            saparecer os corpos. Você retira números de circulação, questiona
            dados, joga mortos por corona vírus em outra rubrica, abre covas
            em lugares invisíveis. Bolsonaro e seus amigos vindos dos porões
            da ditadura militar sabem como operar com essa lógica. Ou seja, a
            velha arte de gerir o desaparecimento que o Estado brasileiro sabe
            fazer tão bem. De toda forma, there is no alternative. Esse era o
            preço a pagar para que a economia não parasse, para que os empre-
            gos fossem garantidos. Alguém tinha que pagar pelo sacrifício. A
            única coisa engraçada é que sempre são os mesmos quem pagam. A
            verdadeira questão é outra, a saber: Quem nunca paga pelo sacrifí-
            cio enquanto prega o evangelho espúrio do açoite?
               Pois vejam que coisa interessante. Na República Suicidária
            Brasileira não há chance alguma de fazer o sistema financeiro verter
            seus lucros obscenos em um fundo comum para o pagamento de
            salários da população confinada, nem de enfim implementar o im-
            posto constitucional sobre grandes fortunas para ter a disposição



            230
   225   226   227   228   229   230   231   232   233   234   235