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nesse desejo inconfesso do sacrifício dos outros e de si há gerações.
            Pobres dos que ainda acreditam que é possível dialogar com quem
            estaria nesse momento a aplaudir agentes da SS.
               Pois alternativas existem, mas se elas forem implementadas
            serão outros afetos que circularão, fortalecendo aqueles que recu-
            sam tal lógica fascista, permitindo enfim que eles imaginem outro
            corpo social e político. Tais alternativas passam pela consolidação
            da solidariedade genérica que nos faz nos sentir em um sistema
            de mútua dependência e apoio, no qual minha vida depende da
            vida daqueles que sequer fazem parte do “meu grupo”, que estão
            no “meu lugar”, que tem as “minhas propriedades”. Esta solidarie-
            dade que se constrói nos momentos mais dramáticos lembra aos
            sujeitos que eles participam de um destino comum e devem se sus-
            tentar coletivamente. Algo muito diferente do: “se eu me infectar, é
            problema meu”. Mentira atroz, pois será, na verdade, problema do
            sistema coletivo de saúde, que não poderá atender outros porque
            precisa cuidar da irresponsabilidade de um dos membros da socie-
            dade. Mas se a solidariedade aparece como afeto central, é a farsa
            neoliberal que cai, esta mesma farsa que deve repetir, como dizia
            Thatcher: “não há essa coisa de sociedade, há apenas indivíduos e
            famílias”. Só que o contágio, Margareth, o contágio é o fenômeno
            mais democrático e igualitário que conhecemos. Ele nos lembra, ao
            contrário, que não há essa coisa de indivíduo e família, há a socie-
            dade que luta coletivamente contra a morte de todos e sente coleti-
            vamente quando um dos seus se julga viver por conta própria.
               Como disse anteriormente, alternativas existem. Elas passam
            por suspender o pagamento da dívida pública, por taxar enfim os
            ricos e fornecer aos mais pobres a possibilidade de cuidar de si e dos
            seus, sem se preocupar em voltar vivo de um ambiente de trabalho
            que será foco de disseminação, que será a roleta russa da morte. Se
            alguém soubesse realmente fazer conta nas hostes do fascismo, ele
            lembraria o que acontece com um dos únicos países do mundo que
            recusa seguir as recomendações de combate à pandemia: ele será



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