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ator contínuo de sua própria catástrofe, ele é o cultivador de sua
            própria explosão. Para ser mais preciso, ele é a mistura da admi-
            nistração da morte de setores de sua própria população e do flerte
            contínuo e arriscado com sua própria destruição. O fim da Nova
            República terminará em um macabro ritual de emergência de uma
            nova forma de violência estatal e de rituais periódicos de destruição
            de corpos.
               Um Estado dessa natureza só apareceu uma vez na história re-
            cente. Ele se materializou de forma exemplar em um telegrama.
            Um telegrama que tinha número: Telegrama 71. Foi com ele que,
            em 1945, Adolf Hitler proclamou o destino de uma guerra então
            perdida. Ele dizia: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”.
            Com ele, Hitler exigia que o próprio exército alemão destruísse o
            que restava de infraestrutura na combalida nação que via a guerra
            perdida. Como se esse fosse o verdadeiro objetivo final: que a nação
            perecesse pelas suas próprias mãos, pelas mãos do que ela mesma
            desencadeou. Esta era a maneira nazista de dar resposta a uma
            raiva secular contra o próprio Estado e contra tudo o que ele até
            então havia representado. Celebrando sua destruição e a nossa. Há
            várias formas de destruir o Estado e uma delas, a forma contrar-
            revolucionária, é acelerando em direção a sua própria catástrofe,
            mesmo que ela custe nossas vidas. Hannah Arendt falava do fato
            espantoso de que aqueles que aderiam ao fascismo não vacilavam
            mesmo quando eles próprios se tornavam vítimas, mesmo quando
            o monstro começava a devorar seus próprios filhos.
               O espanto, no entanto, não deveria estar lá. Como dizia Freud:
            “mesmo a auto-destruição da pessoa não pode ser feita sem satis-
            fação libidinal”. Na verdade, esse é o verdadeiro experimento, um
            experimento de economia libidinal. O Estado suicidário consegue
            fazer da revolta contra o Estado injusto, contra as autoridades que
            nos excluíram, o ritual de liquidação de si em nome da crença na
            vontade soberana e na preservação de uma liderança que deve en-
            cenar seu ritual de onipotência mesmo quando já está claro como



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