Page 191 - Quarentena_1ed_2020
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A epidemia de coronavírus como um momento da crise ecológica
global e duradoura que impôs brutalmente sobre nós
“a súbita e dolorosa percepção de que a definição clássica de
sociedade - humanos entre si - não faz sentido. O estado da
sociedade depende a cada momento das associações entre
muitos atores, a maioria dos quais não possui formas humanas.
Isso vale para os micróbios - como conhecemos desde Pasteur -,
mas também para a internet, a lei, a organização de hospitais, a
logística do estado e o clima. “
Obviamente, como Latour está bem ciente, há uma diferença
fundamental entre as epidemias de coronavírus e a crise ecoló-
gica: “na crise da saúde, pode ser verdade que os seres humanos
como um todo estejam ‘lutando’ contra o vírus - mesmo que ele
não tenha nenhum interesse em nós e vá de garganta em garganta
nos matando sem querer. A situação é tragicamente revertida na
mudança ecológica: desta vez, o patógeno cuja terrível virulência
mudou as condições de vida de todos os habitantes do planeta não
é o vírus, é a humanidade!”
Embora Latour acrescente imediatamente que “isso não se
aplica a todos os seres humanos, apenas àqueles que fazem guerra
contra nós sem nos declarar guerra”, a agência que “faz guerra
contra nós sem nos declarar guerra” não é apenas um grupo de
pessoas, mas o sistema socioeconômico global existente - em suma,
a ordem global existente da qual todos (toda a humanidade) par-
ticipamos. Podemos ver agora em que reside o potencial verdadei-
ramente subversivo da noção de assemblage: surge quando a apli-
camos para descrever uma constelação que também compreende
seres humanos, mas do ponto de vista “desumano”, para que os
humanos apareçam como apenas um entre os atores. Lembre-se da
descrição de Jane Bennet de como os atores interagem em um local
poluído: como não apenas os seres humanos, mas também o lixo
podre, os vermes, os insetos, as máquinas abandonadas, os venenos
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