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do limiar de nossa percepção por décadas, vírus e bactérias estão
            sempre presentes. Aqui, às vezes até com função positiva crucial
            (nossa digestão funciona apenas através das bactérias no estôma-
            go). Não basta introduzir aqui a noção de diferentes estratos onto-
            lógicos (como corpos, somos organismos que hospedam bactérias
            e vírus; como produtores, mudamos coletivamente a natureza ao
            nosso redor; como seres políticos, organizamos nossa vida social e
            nos envolvemos nas lutas nele; como seres espirituais, realizamos
            a realização na ciência, arte e religião; etc.) “Assemblage” signifi-
            ca que é preciso dar um passo adiante em direção a uma espécie
            de ontologia plana e conceber como esses diferentes níveis podem
            interagir em um mesmo mesmo nível ontológico: os vírus como
            agentes são mediados por nossas atividades produtivas, por nossos
            gostos culturais, por nosso comércio social ... É por isso que, para
            Latour,

                           “a política deve se tornar material, um Dingpolitik girando em
                           torno de coisas e questões de interesse, e não em torno de valores
                           e crenças. Células-tronco, telefones celulares, organismos gene-
                           ticamente modificados, patógenos, nova infraestrutura e novas
                           tecnologias reprodutivas geram públicos preocupados em criar
                           diversas formas de conhecimento sobre esses assuntos e diver-
                           sas formas de ação - além de instituições, interesses políticos ou
                           ideologias que delimitam o domínio tradicional da política. “ 103

               Mais uma vez, as epidemias de coronavírus não seriam uma
            assemblage de mecanismos virais de (potenciais) patógenos, agri-
            cultura industrializada, rápido desenvolvimento econômico global,
            hábitos culturais, comunicação internacional explosiva etc., etc.?




            103  Martin  Mueller,  “Assemblages and  Actor-networks: Rethinking Socio-material
                Power, Politics and Space”, citado em http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/
                gec3.12192/pdf. Parece-me que a leitura normativa predominante de Hegel à la
                Brandom ignora esse entrelaçamento de posturas e reivindicações normativas
                com uma complexa rede de processos de vida materiais e imateriais.



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